quinta-feira, 29 de maio de 2014

Narciso e Eco

Narciso e Eco
Narciso, um jovem de extrema beleza, era filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liriope. No entanto, apesar de atrair e despertar cobiça nas ninfas e donzelas, Narciso preferia viver só, pois não havia encontrado ninguém que julgasse merecer seu amor. E foi o seu desprezo pelos outros que o derrotou.
Quando Narciso nasceu, sua mãe consultou o adivinho Tirésias que lhe predisse que Narciso viveria muitos anos desde que nunca conhecesse a si mesmo. Narciso cresceu tornando-se cada vez mais belo e todas as moças e ninfas queriam seu amor, mas ele desprezava a todas.
Narciso
O nome Narciso (tema narkhé = torpor, como em narcótico para nós) já parece indicar o que sua existência significaria: sua beleza entorpece, atordoa, embaraça a todos aqueles por quem ela é vista. Mas também, por sua ascendência, Narciso tem estreita relação com a ideia de água, escoamento e fertilidade, por parte de pai, bem como mansidão, voz macia e leveza (por parte de mãe). Tudo isso influenciaria sua vida. Vejamos por quê.
Conta-se que, certa vez, Narciso passeava nos bosques. Perto dali, a ninfa ECO, que era uma tagarela incorrigível, acompanhava-o, admirando sua beleza, mas sem deixar que a notasse. Eco, em virtude de sua tagarelice, foi punida por Hera, esposa de Zeus, para que sempre repetisse os últimos sons que ouvisse (por isso, na física, chamamos de eco a reverberação do som). Por sua vez, Narciso, suspeitando de que estava sendo seguido, perguntou: “quem está aí?”. E ouviu: “Alguém aí?” Então, ele gritou novamente: “Por que foges de mim?”. E ouviu “foges de mim”. Até dizer “Juntemo-nos aqui” e ter como resposta “juntemo-nos aqui”. Toda essa repetição acabou deixando Narciso angustiado por desejar amar algo que não poderia ver.
Dessa forma, Narciso entristeceu-se e foi à beira de um lago, onde, de modo surpreendente, deparou-se com sua imagem nos reflexos da água. Como nunca antes havia se olhado (pois sua mãe foi recomendada a não permitir que isso ocorresse), enamorou-se perdidamente, acreditando ser a pessoa com quem estava “dialogando”. Por isso, tentou buscar incessantemente o seu reflexo, imergindo nas águas nesse intento, mas acabou morrendo afogado. A ninfa Eco sentiu-se culpada e transformou-se em um rochedo, vivendo a emitir os últimos sons que ouve. Do fundo da lagoa, surgiu a flor que recebeu o nome de Narciso e tem as suas características.
O mito de Narciso e Eco é, até hoje, estudado pelos psicólogos. Alguns explicam que o alter ego, isto é, o outro que nos completa, é buscado fora de si, mas sempre como um retorno a si mesmo.  Essa compreensão mostra o quanto somos egoístas em relação às nossas necessidades, a ponto de ser possível uma relação entre um mito da Antiguidade e as sociedades de consumo do sistema capitalista de produção. Isso porque nesse sistema vivemos em busca de preencher o vazio libidinal que nos atormenta, redirecionando nossas pulsões sexuais para a satisfação na aquisição de bens. Ora, é essa tentativa de satisfação que promove um individualismo exacerbado no mundo contemporâneo, sendo, por isso, apelidado de sociedade narcisista.

O erro de Narciso

Monalisa aderindo ao Selfie
Acho que todos conhecem a história de Narciso, não? Apaixonado por suas selfies, nada mais fez de sua vida senão contemplar-se no Instagram, até nele mergulhar e morrer. Dizem que isso é mito e muito antigo, coisa de grego. Só se for a parte do mergulhar e morrer (se bem que…) porque, no mais, Narciso segue vivo, firme e forte, com o perfil ativo no Facebook e em todo canto da internet. Narciso, hoje, é legião.
Uma de suas características principais, segundo o filósofo Louis Lavelle, que escreveu um livro a respeito, do qual tomei de empréstimo o título acima, é procurar mais aquilo que o agrada do que aquilo que ele é. Cientistas sociais, psicólogos, especialistas de toda ordem, estudam, pesquisam, analisam, teorizam, discutem, há tempo o narcisismo e as redes sociais, terreno fértil para sua propagação, e seus estudos costumam demonstrar que muitos tendem a se sentir mal, tristes, sozinhos, depressivos, invejosos, quando veem os amigos nas redes sociais publicando fotos de festas, viagens, férias, e por aí vai. Claro, naquele momento, é mais agradável ser eles do que eu.
Parece coisa de adolescente, e é – Narciso, aliás, tinha 16 anos. Mas hoje em dia a adolescência esticada é um fato, e os 16 anos de Narciso devem equivaler aos 42 anos na atualidade. É uma epidemia, portanto.
Seria o caso de perguntar em que ponto o amor-próprio se torna doença e volta-se contra si mesmo. Mas acredito que quando se torna mania publicar selfies logo que consumado o ato sexual (#AfterSex), ou sua variante a mostrar como ficou seu cabelo depois (#AfterSexHair), ou para mostrar sua roupa e expressão facial quando se está num funeral (#funeral), enfim, quando chegamos a isso, algo me diz que aquele ponto já foi ultrapassado faz tempo e falar de limites seria até interessante, mas tão produtivo quanto analisar o pênalti perdido por Zico na Copa de 1986.
Na verdade, embora quando se fale de narcisismo logo venha à mente vaidade, seu significado tem mais a ver com entorpecimento, que vem da origem grega do seu nome, narkhé. E é essa, parece-me, a marca registrada do narcisismo do nosso tempo, que já se fez antigo e, pelo visto, perdurará bastante. Estamos entorpecidos, narcotizados moral e espiritualmente, tanto que dá sono só de ler essas palavrinhas, como se a mera menção despertasse um fiscal chato com a única finalidade de estragar prazeres. É proibido proibir, e beijinho no ombro a quem discorda.
No fim, o destino de todo Narciso é não ser amado, nem por si mesmo, e é essa dor que entorpecemos com nossa fabricada espontaneidade e rígido controle de qualidade da imagem que passamos aos outros nas redes sociais. Como somos parecidos por lá, já reparou? Além de Narcisos, também somos Eco, a ninfa condenada pela deusa Hera a somente repetir o que os outros diziam, por ser muito tagarela. Ela se apaixonou por Narciso, mas não podendo expressar seu amor, terminou sendo rejeitada, isolando-se do mundo nas montanhas, onde se transformou em rochedo, mas continuando até hoje a ecoar, a repetir palavras que parecem, mas não são suas. Por que mesmo você entrou na onda das selfies?

Fonte: Francisco Escorsim, advogado e professor, é coordenador do Instituto de Formação e Educação de Curitiba (IFE). Artigo publicado no jornal Gazeta do Povo (Curitiba)


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